Decolonialidades na Educação em Ciências

terça-feira, Março 22, 2022
Português, Brasil

PREFÁCIO
Apesar de nos ter proporcionado um projeto humanitário secular de sociedade, a modernidade promoveu formas de conhecer e de viver sustentadas por ideias como progresso, racionalidade técnica, pensamento
universal e superioridade eurocêntrica. Tal projeto materializou-se em um modelo
de desenvolvimento econômico que se revelou, por vezes, predatório dos recursos
naturais, promotor de expropriação de territórios e de populações, e destruidor de
culturas. Questionamentos acerca das bases econômicas e filosóficas que caracterizam a modernidade têm permitido reflexões acerca de alguns de seus aspectos
mais problemáticos. Entre eles, estão o estabelecimento de relações assimétricas de
poder e a construção de hierarquias, que levam a desigualdades e à subalternidade
de povos e ideias. Entretanto, apesar de mudanças nas dinâmicas geopolíticas e da
emergência de movimentos, lutas, e teorias pós-coloniais, muitos destes problemas
permanecem na contemporaneidade. Graças a autores latino-americanos como
Quijano, foi possível compreender que formas de dominação e de relação com a
natureza associadas à modernidade - que tinham suas raízes no colonialismo-, se
transformam e se rearticulam, permitindo, assim, a construção e a manutenção
de assimetrias de poder e de mecanismos de subordinação nas sociedades ditas
pós-coloniais. Essencial para o entendimento dessa proposição, a expressão colonialidade se refere, portanto, aos modos contemporâneos de (re)articular práticas de
apropriação da natureza, de (des)valorização de formas de pensamento e de opção
por modelos econômicos sustentados pela acumulação. Por meio do conceito
de modernidade/colonialidade, Quijano descreve como o poder age através de
redes globalizadas promovendo a valorização das epistemologias e ontologias
ocidentais e, ao mesmo tempo, silenciando formas outras de ser e de conhecer.
Neste contexto, não é possível ignorar o papel desempenhado pela ciência
moderna ocidental como um elemento central e constitutivo da modernidade. O
alto prestígio e elevado grau de legitimidade das formas de pensamento científico,
bem como dos produtos sociais e tecnológicos a ele associados, têm sustentado,
justificado e impulsionado um modelo de desenvolvimento social, que tem a
desigualdade e o apagamento de culturas como algumas de suas consequências
mais incômodas e indesejáveis.
Tal visão é, ao mesmo tempo, perturbadora e instigante para nós, educadores
em ciências. Ela nos interpela a considerar o papel da educação, de forma geral, e
da educação em ciências, em particular, tanto na produção quanto no combate a
injustiças sociais. Neste livro, encontramos um conjunto de autores que enfrenta
este desafio e propõe (re)pensar a educação (em ciências) a partir de diálogos com
diversas formas do que conhecemos hoje como pensamento decolonial. Este surge
como possibilidade de ir além dos dilemas da modernidade/pós-modernidade
e inscreve-se num espaço que valoriza o respeito à diversidade, a busca por
justiça social e o exercício do diálogo como promotor de uma nova ordem, mais
horizontal, democrática e igualitária, nas relações entre culturas e saberes, e nos
seus desdobramentos. Nos capítulos deste volume encontramos exemplos de
investigações e estudos, nos quais problematizam-se pressupostos, conceituam-se
definições e exploram-se relações entre autores identificados com o campo dos
Estudos Decoloniais. Neles encontramos proposições que envolvem novas formas
de compreensão e posicionamento frente a questões agudas que atravessam as
sociedades contemporâneas. Ao apontar ambivalências, explicitar controvérsias
e desafiar consensos, as experiências discutidas neste livro nos provocam e nos
deslocam de nossas zonas de conforto. Ao mesmo tempo, não se furtam de uma
reflexão crítica acerca do seu significado, da sua agenda e do seu papel social,
bem como sobre possíveis limites - internos e externos à comunidade acadêmica -,
que podem afetar seu potencial transformador. Neste sentido, a decolonialidade
é não somente como uma corrente epistemológica, mas como uma forma de
postura politica. Este livro exemplifica, com competência e coragem, tal acepção e
perspectiva.
Isabel Martins
Instituto Nutes de Educação em Ciências e Saúde
da Universidade Federal do Rio de Janeiro

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